07/11/2011

As falsas promessas do poderio aéreo


Dois F-15E Strike Eagle na escolta de um B-2 Spirit, bombardeiro capaz de portar munições convencionais e nucleares.

THE NEW YORK TIMES – O Estado de S.Paulo

O bombardeio aéreo é uma arma imprevisível e seu maior perigo está no fato de que, por sugerir um possível conflito fácil, nos arrasta para guerras que poderíamos evitar.

Há cem anos, em 3 de novembro de 1911, um aviador italiano chamado Giulio Gavotti lançou três granadas de mão do seu monoplano sobre um acampamento de soldados árabes e turcos em Ain Zara, a leste de Trípoli, durante a guerra turco-italiana. Foi o primeiro bombardeio aéreo da história. Cada granada pesava quase 1,5 quilo e provavelmente ninguém se feriu.

“Voltei realmente satisfeito com o resultado”, escreveu o tenente Gavotti ao pai. Os jornais italianos tripudiaram com o ataque: “Aterrorizados, os turcos se espalham”.
Deste modesto começo, o ataque aéreo como novo estilo de guerra cresceu, tanto em escala quanto em imaginação. Romancistas famosos como H. G. Wells fantasiavam sobre a guerra a bordo de aviões e máquinas voadoras desde o final do século 19. Quando a 1.ª Guerra eclodiu, essas cenas de ficção científica tornaram-se recorrentes nas avaliações estratégicas dos planejadores militares, que pressupunham que vitória e derrota numa guerra feita com bombas seriam absolutas e imediatas.


Em 1914, o almirante Paul Behncke, da Marinha alemã, observou que uma incursão sobre os edifícios do governo em Whitehall, em Londres, “causaria pânico entre a população fazendo com que a continuação da guerra se tornasse duvidosa”.

Em janeiro de 1915, as incursões aéreas começaram; até o final da guerra, os zepelins alemães haviam despejado 6 mil bombas sobre a Grã-Bretanha, matando 556 pessoas. Em 1917, o general Jan Smuts previu: “Talvez não esteja muito distante o dia em que as operações aéreas, com sua possibilidade de devastação dos territórios inimigos e da destruição de centros populosos e industriais em vasta escala, se tornarão as principais operações de guerra”.

Os bombardeios sempre prometeram transformar a guerra. “Não se recorrerá mais ao cansativo e dispendioso método de desgaste das forças terrestres inimigas por meio de ataques contínuos”, afirmou Billy Mitchell, o pai da Força Aérea dos Estados Unidos, na década de 20. E ele insistiu que os bombardeios certamente provocariam “a melhoria e o aprimoramento das condições da guerra”, pois trariam “resultados rápidos e duradouros”. Era uma alternativa atraente para as confusas guerras do passado que se desenrolavam em terra.

Além disso, os defensores mais entusiastas do poderio aéreo eram obcecados pela lembrança das trincheiras da 1.ª Guerra, descrita de maneira chocante pelo poeta Wilfred Owen: “Encurvados, como velhos pedintes cobertos de sacos, os joelhos se tocando em tesoura, tossindo como megeras, praguejávamos envoltos na lama”. Owen queria ser aviador, mas, como tantos outros, morreu como soldado em solo francês. Mais de 57 mil soldados britânicos perderam a vida somente no primeiro dia da Batalha do Somme.

Nada poderia ser tão terrível do que isso, e se alguém tiver de combater numa guerra em algum lugar, faça-o no ar e não na lama. Em 30 de maio de 1942, a Real Força Aérea britânica lançou o primeiro de mil ataques aéreos sobre uma cidade da Alemanha, Colônia.

Duas semanas mais tarde, o chefe do Comando de Bombardeiros, Arthur Harris, escreveu a Winston Churchill solicitando uma força de bombardeiros mais potente. Era a única maneira, explicou, de impedir um massacre das forças britânicas “na lama de Flandres e da França”.

Na Conferência de Casablanca, em janeiro de 1943, Franklin D. Roosevelt e Churchill concordaram numa ofensiva conjunta de bombardeios aéreos. Entre julho de 1944 e abril de 1945, a campanha anglo-americana despejou mais de 1 milhão de toneladas de bombas sobre a Europa.

Continuidade. As guerras continuam, assim como os bombardeios. Entre 1950 e 1953, os EUA lançaram 635 mil toneladas de bombas na Coreia, além de 32.557 toneladas de napalm. Segundo o historiador Bruce Cummings: “Depois da 2.ª Guerra, a Coreia fez reviver o refrão da força aérea de que as bombas incendiárias enfraqueceriam o moral do inimigo e acabariam com a guerra mais rapidamente”. Esta vã ilusão continuou determinando a estratégia bélica.

Em 13 de fevereiro de 1965, o presidente Lyndon Johnson ordenou o início de uma campanha de bombardeios aéreos graduais, denominada Rolling Thunder. O general Maxwell Taylor imaginava “uma lenta, mas inexorável, barragem de ataques aéreos avançando rumo ao norte (o Vietnã do Norte), capaz de convencer o governo de Hanói de que tudo o que existisse na área da cidade seria destruído, a não ser que seus líderes modificassem suas atitudes”. Talvez as bombas tenham contribuído para acelerar o final destas guerras, embora não seja possível saber ao certo.

No entanto, ninguém poderá afirmar que as campanhas de bombardeios fizeram do conflito no Vietnã uma guerra limpa, que tornaram a Coreia eficiente. Todas as histórias de bombardeios são também uma história de vítimas civis, pois os bombardeios salvam as vidas dos soldados em detrimento de outras vidas.
As estatísticas das mortes em bombardeios entre os civis nunca são confiáveis, mas é provável que, durante a 2.ª Guerra, os ataques aéreos das forças aliadas tenham tirado a vida de 500 mil civis alemães. Acredita-se que a operação Rolling Thunder tenha deixado 182 mil mortos entre os civis no Vietnã do Norte.

Entretanto, continuamos planejando nossas guerras com base numa ideia utópica a respeito dos bombardeios. Em março deste ano, aviões franceses bombardearam tanques líbios ao redor de Benghazi, dando início a uma campanha da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) que prosseguiu até a morte do coronel Muamar Kadafi, no dia 20. Este fato é significativo: um drone Predator e um caça francês voavam no céu líbio naquele momento, mas foram soldados líbios no solo que capturaram seu antigo líder.

O bombardeio aéreo é uma forma de combate prevista como uma fuga do passado. No entanto, cada novo conflito não passa de mais um episódio da longa história de promessas que exaltam a vitória “sem custos” e a guerra limpa. Para cada exemplo de um conflito aparentemente facilitado pelo poderio aéreo, existe seu reverso: um conflito que o poderio aéreo só contribuiu para complicar e intensificar.

Embora a guerra na Líbia quase certamente pudesse ter sido muito mais sangrenta sem o poderio aéreo da Otan, os ataques aéreos realizados por drones como o Predator e o Reaper no Afeganistão e no Paquistão são a causa do sentimento antiamericano.

O bombardeio aéreo é uma arma imprevisível e seu maior perigo está talvez no fato de que, por sugerir a possibilidade de um conflito fácil, nos arrasta para guerras que poderíamos evitar. Desse modo, ele é ao mesmo tempo o símbolo da nossa fé na tecnologia e o sinal da nossa dependência do passado. Algumas semanas atrás, um avião da Otan bombardeou Ain Zara – hoje um bairro de Trípoli. Um século depois, voltamos ao ponto de onde começamos.

TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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