Ígor Chnee Foto: Arquivo pessoal |
Aos cinco anos de idade, Ígor brincava na fazenda de seu pai quando um avião polonês caiu em um campo próximo e pegou fogo. O menino correu para o local e viu o corpo do piloto carbonizado. Era o ano de 1939, e essa é a primeira lembrança que Ígor tem da Segunda Guerra Mundial.
Mais de sete décadas depois, Ígor vive no Brasil, onde foi diretor da Câmara de Comércio Brasil-Rússia e atualmente preside a Sociedade Filantrópica Paulista, asilo para idosos de origem russa, e a Sociedade Eslavo-Brasileira.
Juntamente com outros imigrantes russos, ele comemora o Dia da Vitória Soviética na Segunda Guerra Mundial anualmente em 9 de maio, quando a Embaixada da Rússia em Brasília e os consulados russos em todo o país organizam eventos para celebrar a derrota do exército nazista e o término do conflito.
“O fim da Segunda Guerra representou muito para mim e minha família, porque era o fim da disputa, o fim da matança, o fim dos bombardeios, prisões e injustiças cometidas pelos nazistas contra os outros povos. Também foi o fim da fome: no último ano da guerra, comíamos uma vez ao dia, apenas batatas congeladas com mostarda, para disfarçar o gosto. Quando acabou a guerra, imediatamente apareceu a Cruz Vermelha e enfim houve a possibilidade de comer”, recorda.
Origens e a guerra
Descendente de uma família de nobres, o pai de Ígor, Anatóli Viktorovitch Chnee, nasceu em Omsk, na Sibéria.
“Minha família tem origem alemã, daí vem o sobrenome Chnee. Mas há 200 anos meus ancestrais imigraram para a Sibéria, foram se casando com russas e viraram cristãos ortodoxos. Meu pai é tataraneto de alemães, mas sempre se sentiu russo e eu também.”
Tenente Anatoli Viktorovitch Chnee. Ajudante do General Vrangel Foto: Arquivo pessoal |
“A cada Ano Novo ele fazia um brinde com champanhe desejando o retorno à pátria. Ele sofria tanto longe da Rússia que dizia que cortaria um braço fora para poder voltar”, lembra.
Anatóli e sua esposa, Vera Tchernishova, se estabeleceram na Polônia, na cidade de Brest (hoje pertencente à Bielorrússia), na fronteira com a Rússia, onde Ígor nasceu, em 1934.
Ali, Anatoli se dedicou à criação de raposas, até que a cidade foi invadida pelo exército nazista, no início da Segunda Guerra Mundial. Sua fazenda foi confiscada e ele foi obrigado a matar cerca de 130 raposas e enviar suas peles para a Alemanha.
“Naquela época, o valor de uma raposa era suficiente para comprar um piano”, explica Ígor.
Com a perda da propriedade, a família de Ígor mudou-se para Varsóvia, onde seu pai fundou a Casa da Juventude Russa, em 1940.
Durante a ocupação nazista, Anatóli trabalhou em uma fábrica de laticínios que devia enviar toda a sua produção para Berlim. Diariamente, Anatóli desviava parte dos produtos para hospitais e creches mantidos pela colônia russa na Polônia.
Não foi a única ocasião em que arriscou a vida desafiando os nazistas. Quando a Alemanha declarou guerra à Rússia, foi criado um campo de concentração de prisioneiros soviéticos em Varsóvia.
“A ordem de Hitler era que fossem abandonados para morrer de fome. Meu pai então pegou um caminhão e lotou de queijos, leite e pão para levar aos prisioneiros.”
Em 1944, com a aproximação do Exército Vermelho em território polonês, Anatóli organizou uma evacuação de russos e a família se mudou novamente, dessa vez para Ravensburg, cidade alemã na fronteira com a Suíça.
No meio do caminho, tiveram que parar em Nuremberg e passaram a noite em um bunker. No dia seguinte, quando saíram do abrigo, a cidade praticamente não existia mais, totalmente arrasada pelos bombardeios dos Aliados.
A ideia era se estabelecer na Suíça, mas o país não permitiu a entrada dos imigrantes russos, que tiveram que permanecer em Ravensburg, onde Anatóli construiu uma Igreja Ortodoxa Russa e formou um comitê de imigrantes russos.
“Todos os horrores da guerra eu presenciei: mortes, bombardeios, destruição de casas, incluindo a minha. Morávamos a um quarteirão do gueto de Varsóvia e eu vi como os alemães matavam os judeus, vi quando incendiaram o gueto, matando quem ainda vivia ali”, recorda Ígor.
“Quando, décadas mais tarde, fui visitar Varsóvia novamente, procurei minha casa e descobri que ali hoje só cresce grama”, conta ele.
Ele também se lembra de Elena Iegorova, jovem judia que tinha mais ou menos sua idade e conseguiu escapar do gueto de Varsóvia, onde os pais foram mortos. Elena foi adotada como filha pelo pai de Ígor e fugiu com a família Chnee para Ravensburg.
“Com o fim da guerra, ela preferiu se juntar ao seu povo e mudou-se para Israel, mas nos correspondemos até hoje.”
Foi em Ravensburg que receberam a notícia do fim da Segunda Guerra, quando o general francês Charles de Gaulle entrou na cidade com suas tropas.
Ainda menino, Ígor se lembra desse dia, quando andou de bicicleta entre os tanques: “Eu era menino e vi todos aqueles tanques entrando, todos aqueles soldados da colônia francesa... Foi a primeira vez que vi um negro”, recorda, fazendo referência aos soldados argelinos que lutaram pela França.
Mudança para o Brasil
Em 1949, Anatóli foi convidado pelo cônsul brasileiro em Frankfurt a emigrar para o Brasil para produzir leite condensado no país. Ainda impedido de voltar à Rússia, Anatoli aceitou o convite e a família desembarcou no Rio de Janeiro no dia 4 de fevereiro de 1949.
“Saímos da Alemanha no inverno, a uma temperatura de 20ºC negativos, e chegamos ao Rio de Janeiro a uma temperatura de 42ºC.”
Sem falar nada em português, Ígor fixou a meta de decorar 60 palavras por dia e logo foi matriculado em uma escola na cidade de Taubaté, em São Paulo, onde a família foi morar.
Ali funcionava a fábrica de produtos alimentícios Embaré, que lançou o primeiro leite condensado produzido no Brasil (até então, o doce era importado da Suíça, produzido pela Nestlé).
Anatoli Viktorovitch Chnee |
A empresa existe até hoje, mas mudou o nome para Itambé.
Anatóli morreu em 1962, nunca conseguindo realizar o sonho de retornar à Rússia. Foi homenageado pela Câmara Municipal de Taubaté e hoje a cidade tem uma rua batizada com seu nome.
Formado em ciências contábeis, economia e administração de empresas, Ígor hoje mora em São Paulo e trabalhou em diversas multinacionais ao longo de sua carreira.
Desde 1995 realiza um trabalho voluntário na Sociedade Filantrópica Paulista, onde hoje é presidente. Fundada por imigrantes russos que chegaram ao Brasil após a Primeira Guerra Mundial, a sociedade abriga um lar para idosos.
A primeira visita de Ígor à Rússia aconteceu em 1987 e desde então ele já voltou mais de uma dezena de vezes ao país.
A última aconteceu no final do ano passado, quando viajou a convite do governo russo para receber das mãos do ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, uma comenda pelos serviços prestados à casa de repouso de idosos russos na capital paulista.
Materia Vanessa Pilz, especial para Gazeta Russa